segunda-feira, 15 de junho de 2009

Ela e as chaves

Autora: Ana Ribas Diefenthaler
No esplendor de seus 75 anos, é uma mulher especial. Ágil e quase hiperativa, independente e plena, dirige o próprio carro, desafia a vida, não esmorece diante das dificuldades, que vão aumentando à medida da passagem do tempo.
Mulher de muito brio e extrema fé, ela tem dificuldades em compreender as novas performances familiares que a sociedade moderna ergueu.

“Para mim, casamento é compromisso de uma vida inteira – e filhos, de toda a eternidade”, costuma dizer, do alto de sua sabedoria de professora “dos tempos em que ser mestra era motivo de orgulho e até de um certo status”.
Elegeu Francisco, aos 21 anos, embora nunca o tenha namorado, como costuma jurar. Bonitão, boa prosa, ele vinha de família de músicos e fazia uma serenata como ninguém – ainda que os cachorros da rua não expressassem muita admiração pelos violões, pandeiro e o repertório, digno de Francisco Alves.

Tinha ele várias candidatas – mas ela o conquistou, justamente porque nunca demonstrou assim, maiores interesses. Formou com ele uma família bonita, cinco filhas e um varão, vários netos, três bisnetos. Mas, desde jovem, sempre teve dificuldades com um item quase bobo: chaves.

No começo, nada muito importante, já que pouco em sua vida exigia trancas. Mas, hoje em dia, enlouquece, às vezes a si própria e a todos à sua volta.
A casa, com várias portas e cadeados, a garagem e o portão de ferro da frente, o acesso do jardim de inverno, são tantas as chaves que tem de administrar, que nunca sabe onde guardou as ditas, quando precisa.

Precisa de mais do que três raciocinadas para definir por que porta vai sair e as chaves que a estratégia exige. Outro dia, pegou a chave da porta interna da garagem e colocou no carro, porque queria entrar em casa por ela, para não ter que abrir as tantas outras do acesso principal.

Esqueceu-se, porém, do que havia arquitetado ao sair – e entrou com o carro, ganhando a porta principal da casa. Minutos depois, lembra que esqueceu-se dos óculos no carro – e, então, procura a chave da porta interna para ir buscá-los.
Algumas xingadas depois, ela recorda que, de manhã, havia colocado a chave no painel do carro. Um longo caminho de abre-portas até resgatar os indispensáveis óculos e ela, esgotada, senta-se no sofá da sala, faz um silêncio inquietante e sorri: “que coisa... o problema é que eu ainda sou do tempo em que não precisávamos acorrentar a própria alma”.
Publicado no Jornal A Notícia.

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